sexta-feira, 22 de julho de 2011

Harry Potter e a Ética de Imprensa

22 de julho de 2011

por Sheila Vieira
“É possível contar um monte de mentiras dizendo apenas a verdade”.
Manual de Redação da Folha de S. Paulo
Na criação do mundo mágico das histórias de Harry Potter, J.K. Rowling deu relevância a diversas instituições do mundo moderno. Uma delas é a imprensa, vista com um olhar mais atento em “Cálice de Fogo” e “Ordem da Fênix”. Minha proposta neste texto será entender como a autora vê o exercício do jornalismo através de suas críticas subentendidas (ou não) nos livros. Meus dois “estudos de caso” serão “O Profeta Diário” (vendo como a mídia tem um papel importantíssimo em tempos de insegurança) e sua repórter Rita Skeeter (analisando a falta de ética na prática jornalística).
                   A SUBMISSÃO DA IMPRENSA EM TEMPOS DE INSEGURANÇA
Rowling muito provavelmente já deve ter lido “1984” de George Orwell, um dos livros mais famosos da Literatura britânica. Lançado em 1949, descreve uma Inglaterra nos anos 80 sob o comando de um governo totalitário, que dominava todas as formas de comunicação e vigiava os cidadãos 24 horas por dia (a expressão “Big Brother” surgiu deste livro). Os integrantes do partido dominante acreditavam que, ao regular o acesso à informação, era possível moldar a visão das pessoas sobre o presente, e até sobre o passado. Apesar de retratar uma situação extrema e fictícia, o livro expõe uma situação verificável na própria História: uma das primeiras coisas que um governo sob pressão ou solidificando seu poder faz é censurar e/ou tomar os veículos de informação.
Isso acontece, pois a imprensa que conhecemos tem a intenção de fiscalizar o poder e defender a democracia. No entanto, nas mãos de um Cornélio Fugde amedrontado, por exemplo, os jornais passam a ser um mero reprodutor das opiniões oficiais, tentando a qualquer custo conter o fortalecimento de grupos que possam se tornar mais populares do que o governo. Este era o risco que a Ordem da Fênix representava para o Ministério da Magia.
No entanto, a falta de independência editorial do “Profeta” não é a única ferida em que a autora põe o dedo. O número reduzido de veículos com grande circulação também é algo visível nos livros, quando publicações alternativas como “O Pasquim” não têm espaço, tampouco popularidade. Uma imprensa que não mostra diversidade de opiniões tende a defender os interesses de poucos, logo, vai contra os princípios democráticos. Na Grã-Bretanha real, há um razoável número de jornais de prestígio (e outros nem tanto, falaremos disso logo em seguida), no entanto, o rádio e a TV têm um grande predomínio da BBC, uma rede estatal.
SOBRE ÉTICA E RITA
Falaremos então de Rita Skeeter. Temos aqui ataque bem explícito ao sensacionalismo dos tablóides ingleses, que violam a privacidade das pessoas, mantêm relações obscuras com suas fontes e distorcem declarações. A principal marca desses veículos é a destruição de reputações e a superexposição da vida privada de personalidades conhecidas pelo público. Nos livros, isso acontece com Hagrid, Dumbledore e com o próprio Harry Potter.
Sem dúvida, Rowling colocou muito de sua experiência pessoal ao escrever sobre isso. Sua vida foi completamente devastada pelos jornalistas britânicos, que buscaram os mínimos detalhes de seu relacionamento com familiares e seu ex-marido. Esses “jornalistas” fazem sua defesa afirmando que, a partir do momento que a pessoa se torna conhecida, automaticamente perde o direito de se preservar (em português claro: “Está na chuva para se molhar”). Esse debate ficou mais acirrado em um dos episódios mais marcantes da História recente da Inglaterra: o assassinato da princesa Diana em 97. Lady Di foi perseguida por um carro de “paparazzi”, seu veículo bateu e capotou, causando sua morte, e o mundo se voltou contra a chamada “imprensa marrom”. Alguns acreditam até hoje que Diana sempre estimulou esse culto à sua personalidade, e o desfecho dessa história (a condenação do motorista da princesa, aparentemente bêbado) mostra que os ingleses ainda preferem não mexer muito nesse vespeiro. Enquanto o público ainda quiser os detalhes “picantes” das personalidades, como a vida familiar de Dumbledore, por exemplo, o total desrespeito dos jornalistas ao direito de privacidade continuará.
Sabemos muito bem quais eram as motivações do “Profeta” e de Rita ao destruir a reputação de Hagrid em “Cálice de Fogo”. Porém, os métodos que um jornalista utiliza para falsificar informações são muitos. A cena da pena de repetição rápida tanto no livro quanto no filme é uma paródia exagerada, mas muito engraçada sobre a distorção de declarações de um entrevistado. No caso de Hagrid, houve a publicação de uma conversa reservada, quando ele diz que sua mãe é gigante. Ao ler o livro, ficamos revoltados com a forma que Rita trabalha, principalmente pela simpatia que temos pelo personagem. Mas no mundo real vemos jornalistas terem a mesma conduta todos os dias (com câmeras escondidas e grampos telefônicos) e aceitamos tudo isso, pois isso seria um meio necessário para atingir um “bom fim” (tornar público algo relevante). Há limites para tudo, inclusive para o jornalismo, mas qualquer tipo de questionamento já é visto como “defesa da censura”.
Rita é uma péssima jornalista porque mente. Mas também porque não é verdadeira a respeito dos métodos que usa para obter suas informações, e aqui ela deixa de ser uma paródia para representar algo que está acontecendo muito na imprensa, cada vez mais. Todos dizem ser objetivos e imparciais. Trata-se de uma certa presunção, pois nenhum repórter consegue esconder totalmente o que pensa ao escrever uma matéria. No entanto, o equilíbrio e o bom senso devem sempre ser buscados. Os veículos de informação têm grande responsabilidade nas mãos, e por mais que digam que só retratam o que acontece no mundo, interferem direta ou indiretamente na sociedade. Rowling quer que sejamos capazes de identificar quando um jornal ou jornalista está tendo a mesma postura que o “Profeta” e Rita, e que possamos cobrar informação de qualidade. Afinal, a imprensa deve estar a serviço do interesse público, sempre. Mas isso se torna cada vez mais difícil quando o próprio público legitima comportamentos antiéticos.

Referências:
Eugênio Bucci: Sobre Ética e Imprensa
George Orwell: 1984


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